"A 'máquina da verdade'"
Postado por SKJ.
A Liga dos Campeões é como um polígrafo futebolístico. O relvado europeu como a 'máquina da verdade'. Um território que não deixa nenhuma equipa 'mentir'. A distância entre abrir a 'caixa de Pandora' ou entrar na 'terra prometida' é uma ténue fronteira invisível mas raramente essa divisão é feita por uma bola que bate no poste ou entra. Há muita matéria antes disso.

O nível competitivo de uma equipa é uma qualidade espiritual que nasce antes das quatro linhas. A difícil negociação entre a coragem e o medo. Do treino para o jogo. Do balneário para o relvado, com o túnel pelo meio, como uma 'porta invisível' para outra dimensão. Uma porta por onde já cedo se perdera, esta época, o cinzento Benfica europeu. Foi a primeira imagem do 'jogo da verdade' que deu ao futebol português vontade de meter a cabeça na areia. O 'princípio da avestruz' regressou esta semana em Munique. A arrepiante derrota do Sporting escapa, porém, à lógica das quatro linhas. Via-se o jogo e percebia-se que o problema já não estava dentro do campo. Estava na tal qualidade espiritual para viver outras realidades. O medo sentido pelos jogadores, assumido pelo treinador, é uma verdade que sufoca. Porque afasta a equipa da sua natureza e provoca uma diferença abissal que, com outro nível espiritual, seria diferente. A táctica é, aqui, puramente 'emocional'.

Na relva do Dragão, depois de Madrid, Lisandro desesperava pela bola que bateu no poste e podia ter sentenciado a eliminatória, mas a 'porta' para a abrir não estava no simples pormenor desse remate. Com outro ponto de partida, a equipa sente-se autorizada a esquecer o pequeno mundo onde vive e entra, com coragem, na verdade europeia. Outra capacidade de sobreviver aos seus impactos mais fortes, como viveu em Londres, e, com orgulho (táctico e emocional) entrar numa galáxia dominada por ingleses faraónicos. Toques com ritmo, a passar ou a segurar a bola, procurando primeiro o jogo e, depois, a baliza. Um crescimento táctico colectivo que ao longo da época está directamente relacionado com uma evolução individual: Cristian Rodriguez, a chave para um carácter diferente a ganhar e conduzir a bola do meio-campo para o ataque, unindo essas duas formas de vida futebolística (lutar pela recuperação da bola e assumir com objectividade a sua posse) sempre olhos nos olhos com o jogo. Em qualquer momento, o polígrafo não detecta a subida da tensão emocional ao ponto da equipa deixar de falar verdade.

O polígrafo do futebol leonino notou-se mais num olhar antes de entrar em campo do que num passe errado já dentro dele no jogo. Da mesma forma que a coragem dispara o talento, o medo sufoca-o. Em cada falha de Polga estava uma metáfora dos problemas da paisagem leonina. Sete golos sofridos desde o check-in no aeroporto até dentro da área no relvado do Alianz Arena. Cada grande plano de Paulo Bento colocava num 'divã' o futebol do Leão porque há muito que a análise fugira da jaula do losango.

Na essência, buscando uma sentença final para estes diferentes mundos (futebolísticos e emocionais), é tudo uma questão de competências. Ser competitivo no futebol moderno é ter a chave dessa 'porta invisível'. Não tenho dúvidas de que está na personalidade conseguir ou não abri-la. O nosso campeonato, ao contrário da galáxia europeia, não exige essa capacidade para descobrir segredos. A todos os níveis.

Extremos tocam-se
Reyes e Di María. Durante muito tempo, pensou-se que estes dois jogadores seriam incompatíveis no plano de jogo benfiquista. A sua coexistência em campo chocava com os equilíbrios defensivos que Quique procurava garantir. Os últimos jogos mostraram outra realidade táctica. É o estranho caso de uma equipa que joga com dois extremos puros sem, com isso, jogar em 4x3x3.

Em termos tácticos, mantêm o dogma do duplo-pivô defensivo chefiado por Katsouranis. Fica a dúvida existencial de saber se, quando regressar, Rubem Amorim será, por fim, o elo de ligação nesse eixo central, depois de tanto tempo desterrado na direita em nome das missões defensivas. Sacrificar um jogador para a equipa sobreviver nem sempre é uma questão lógica quando isso mexe com o talento de vários outros jogadores.

Na união Reyes-Di María existe, porém, uma ténue evolução na estrutura táctica. Do 4x4x2 para uma espécie de 4x2x3x1. O agente provocador está no centro do '3' da segunda linha do meio-campo: Aimar. Mais do que outra forma de jogar, é outra forma de atacar. Reyes e Di María mantêm-se encostados à linha e vão trocando de posição. Como são ambos esquerdinos, um deles estará sempre a jogar num flanco 'contranatura' no plano natural de usar mais vezes o melhor pé. O jogo avança e eles trocam de faixa. Não existe comparação entre os dois. Reyes é, claramente, muito mais 'jogador'. Di María é uma sucessão de impulsos individuais. Por isso, Reyes continua com visão de jogo apurada, mesmo na direita, fora do seu habitat natural. Di María fica 'perdido'.

Na reciclagem táctica encarnada os extremos tocam-se, mas nem todos percebem esta prova cristalina de como o bom futebol é propriedade dos melhores jogadores. Como Reyes.

'Inglaterra' global
Na verdade da Champions, prova-se que o grande futebol se joga hoje em Inglaterra. Das oito equipas que seguem em frente, quatro são onzes multinacionais vindos da pátria inglesa. Todos os que começaram a prova. É uma consequência desportiva de um poder financeiro no tempo do futebol global. Pelo meio, caiu o rígido futebol táctico dos italianos. Num desses duelos, a globalização ganhou na relva a face portuguesa no confronto Mourinho-Ronaldo.

Mais do que expressões do futebol português, eles incorporam, num tempo de esbater de identidades, o duelo entre Itália e Inglaterra. Ronaldo parece, nas vertigens do seu estilo veloz, passando por adversários, só com olhos na baliza, um jogador com mentalidade inglesa. É difícil combater essa versão anglo-latina do futebol com a táctica feita cimento. De pé, Mourinho manteve o "style iconográfico". Imperturbável. Em campo, Ibrahimovic vivia, porém, órfão de boas ideias. O império inglês é hoje a verdade que come o futebol europeu. A Champions quase como a Taça de Inglaterra.

Um avião, um pente
Pelo ego que têm, os jogadores, jovens aspirantes a estrelas, criam facilmente inimigos, reais e imaginários. Dificilmente um corte de cabelo fará, por si próprio, alguém pensar melhor. Independentemente das razões, o caso de Veloso tornou-se mais do que um problema no Sporting. Expõe o clube, o treinador e, claro, o jogador. É penoso ver tanto talento perdido num labirinto, interno (a sua cabeça) e externo (quem o rodeia).

Após as suas declarações num momento em que partia na comitiva da equipa para um jogo de máxima responsabilidade na Champions, o ser ou não ser centra-se em saber se o mais grave foi entrar no avião ou, depois, entrar em campo. A resposta é simples: a razão das coisas está sempre na sua origem. Um avião, um pente. Por esta ordem.
por Luís Freitas Lobo, in Expresso

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